Série de sermões expositivos sobre O Céu. Sermão Nº 158 – O sexto dia da criação: a criação do homem (Parte 132). Gn 1:27: a Bíblia versus o Secularismo (Parte 85). Pregação do Pastor Jairo Carvalho em 07/05/2025.
INTRODUÇÃO
Anselmo de Cantuária (1033-1109), conhecido como Doutor Magnífico, por causa da sua grande capacidade intelectual, foi uma das figuras mais importantes e extraordinárias da Idade Média. Ele desenvolveu uma dissertação importante sobre a relação da razão e a fé. Em sua obra “De veritate”, ele afirma que “a verdade suprema é Deus”. Ele defendeu a ideia de que o uso da argumentação racional é necessário para compreender a própria fé e a verdade revelada, em obediência ao princípio agostiniano da fé à procura da inteligência (fides quaerens intellectum).
Essa argumentação dialética, sustentada pela exigência da retidão relacionada à Sagrada Escritura, “[…] é assumida como fonte primeira e critério último de toda a especulação anselmiana”. Já que, se a Sagrada Escritura se opõe àquilo que é dito, mesmo que aos nossos olhos seja correto, deverá ser rejeitado: visto ser a fé a sabedoria inspirada por Deus, é nela que a compreensão atua, e não o contrário.
É pelo método que Anselmo se impõe à posteridade. Esse pode ser compreendido naquilo que o próprio Anselmo escreve no final do primeiro capítulo e no início do segundo capítulo de sua obra Proslogion:
“Não procuro, Senhor, penetrar a Tua profundidade, porque de maneira nenhuma lhe comparo a minha inteligência, mas desejo entender, de certa forma, a tua verdade que o meu coração crê e ama. Nem procuro entender para crer, mas creio para entender. Pois, até isto eu creio: que, se não acreditar, não entenderei. Portanto, Senhor, Tu que dás o entendimento da fé, concede-me que, quanto sabes ser-me conveniente, entenda que existes como acreditamos e que és o que acreditamos [seres][1]”
Dante vai trabalhar sua poesia, tomado a dialético de Anselmo de Cantuária. A tensão entre fé e razão, presente em Anselmo, também é um tema central na obra dantesca. Dante, ao utilizar a razão como ferramenta para interpretar a revelação divina, reflete o pensamento anselmiano que defende que a razão pode auxiliar a compreensão da fé, e os limites e perigos da razão.
- As Escrituras e o poema de Dante.
Nas exposições das Escrituras, Dante nos concedeu julgamentos independentes e mais avançados e até mesmo pré-reformado: por mais culto que fosse em estudos sagrados e patrísticos[2], o encontramos sempre aplicando a Bíblia a questões da vida cotidiana. Assim como inconscientemente aprendemos algo de nossa teologia com John Milton[3], muitos italianos cultos apenas citam Dante quando pensam estar citando a Bíblia. Toda a extensão e abrangência do ser espiritual do homem é o tema da abordagem de Dante até a eternidade. Ele pretendia nada menos do que expor todo o processo e a filosofia da queda e da restauração do homem. Não apenas os meios exteriores para a cura das almas, mas a grande variedade de agentes espirituais que atuam para a punição dos perdidos e a recuperação dos arrependidos constituem o tema de sua história.
- A hamartiologia dantesca.
Coloquemo-nos, então, novamente com o poeta, na floresta sombria. Dante usa a floresta sombria como símbolo do estado caído do homem. Assim como C.S. Lewis utiliza a era de gelo da Feiticeira branca, nas Crônicas de Narnia[4], para se referir à indiferença e à incredulidade do pecado; o guarda-roupa para simbolizar as novas vestes de salvação; e o Leão para representar Jesus, e que se sacrificou por Edmundo, o pecador e traidor de Narnia. Assim, Dante, o poeta é apenas a imagem da humanidade, afastando-se de Deus e perecendo miseravelmente em seu esquema pecaminoso, desde a queda no Éden.
A consciência, que não é um guia confiável, vai tentar impedir o peregrino de subir a encosta do “conhecimento e da virtude”. Esse impulso ascendente será neutralizado (impedido) pelas artes e artifícios do grande adversário. O peregrino enfrenta tentações que são personificadas pela onça (luxúria, impureza), lobo (avareza), leão (soberba). Aqui, Dante demonstra que a filosofia e a ciência, bem como sabedoria e conhecimento humano, embora valiosos, são insuficientes para encontrar o caminho da redenção e ineficazes para alcançar a plenitude espiritual e o verdadeiro entendimento das verdades divinas.
Dante mostra em seu poema a necessidade de um guia superior, representado por Beatriz, que simboliza o papel da intervenção divina no Evangelho, por meio fé, na jornada humana rumo ao céu, mostrando que a humanidade precisa de toda a ajuda que possa vir tanto da terra quanto do céu.
- A Redenção Dantesca.
Dante mostra que Deus nos deixou as Escrituras e mestres piedosos, e estes devem mostrar aos homens a natureza e as consequências de seus pecados e os meios de purificação deles por meio de Jesus Cristo. No poema, Virgílio[5] é o representante da mais alta sabedoria terrena. Ele representa a filosofia e o conhecimento humano, na busca da verdade e de aperfeiçoamento.
Dante mostra que a ciência humana pode nos levar a um reino terrestre, embora nunca perfeito, e muitas vezes baseado no mito do progresso constante. Esse trabalho da ciência representa a busca de céu, que o secularismo quer fazer sem Deus e sem as Escrituras. Mas se quisermos ir além, na busca da perfeição, precisamos de um guia superior e infalível.
Enquanto isso, vemos que o pai do romantismo alemão Goethe, em seu romance “O Fausto”, na busca de satisfação daquele momento, diz: “Pare, você é tão perfeito”, mas então será guiado por Mefistófeles, que é o diabo.
Mostrando que a modernidade é um desfecho de contratos e acordos, com qualquer verdade ou coisa que promova a possibilidade de encontrar satisfação. Fausto busca essa completitude na razão, nos prazeres, no poder e até mesmo no amor, mas em vão e no final ele coloca Fausto no céu baseado na intercessão dos santos do passado, representando uma busca pela antiguidade. O romance de Dante mostra que os poetas e filósofos antigos, como Virgílio, são guias fundamentais para a educação intelectual e moral, mas, segundo Dante, há uma limitação intrínseca em confiar somente na razão humana.
- O Propósito Dantesco[6] da Razão.
A busca pela verdade, sem a orientação divina, pode levar a um entendimento fragmentado e imperfeito da realidade e essa tem sido a grande armadilha do diabo por meio do secularismo. A confiança na razão pode levar a humanidade ainda mais para a floresta sombria. O iluminismo francês é o exemplo da vileza e maldade da razão humana, que foi um terror em nome da “liberdade, fraternidade e igualdade”.
Em um momento de grande desespero e confusão, Dante encontra em Virgílio o auxílio para iniciar sua jornada, mostrando que ninguém pode entrar no caminho do conhecimento sem ser guiado. Mesmo sendo o grande poeta o seu guia, ele não confia nele completamente, e algum momento da viagem o peregrino demonstrará total desconfiança em seu guia. Dante mostra que a razão não é um guia completamente seguro[7]. No início do diálogo (O Inferno 9), retoma a história, enfatizando a dúvida e a preocupação que Virgílio sente, apesar de suas palavras tranquilizadoras, na tentativa de aprofundamento e intimidade entre o viajante e seu guia[8]. Dante mostra perfeitamente que mesmo a razão humana lida com dúvidas e preocupações que não podem ser respondidas sem a ajuda da fé nas Escrituras. No Canto IV O Inferno, o peregrino, faz uma pergunta a seu guia Virgílio, mas ele não consegue responder:
“Ó, dize-me, reverenciado senhor!
Diga-me, meu mestre!” Comecei com o desejo
de plena certeza naquela fé sagrada,
Que vence todo erro; “diga,
alguém já, ou por mérito próprio ou alheio,
Saiu de lá, quem depois foi abençoado?“[9]
Nesse momento, seu grande mestre falha em dar uma resposta satisfatória e eles estão em desacordo, e nenhum deles consegue tranquilizar o outro, mas ao mesmo tempo são profundamente protetores dos sentimentos um do outro. Nesse impasse secreto (íntimo deles) então um ser poderoso consegue responder:
“Perfurando o significado “secreto” da minha fala,
Ele respondeu: “Eu era novo naquele estado,,
Quando vi um ser poderoso chegar, entre nós…”
Aqui mostra que a razão pode muitas vezes não ter as repostas que precisamos de forma definitiva. Somente as Escrituras podem nos dar todas as respostas que o nosso coração almeja. O final do canto mostra que o guiamento de Virgílio (razão) é somente pelo inferno e purgatório[10] (progresso moral), porém, ineficaz para guiá-lo ao céu. Quando ele chega no portão ele não pode passar.
Dante, portanto, vai além da mera razão humana e mostra que a sabedoria terrena tem suas limitações. A busca pela verdade não pode ser completamente realizada sem a orientação divina. No momento crucial da jornada, a razão, personificada por Virgílio, precisa ceder seu papel à graça divina para alcançar a verdadeira iluminação espiritual. Para alcançar a plenitude da verdadeira iluminação espiritual, não será possível sem a intervenção de Beatriz – e, portanto, da graça divina – o que é indispensável.
Virgílio ensina o peregrino sobre o valor e a importância da sabedoria terrena, mas reconhece que seu papel é limitado e que a verdadeira redenção só pode ser alcançada com a ajuda divina, no Evangelho. A jornada de Dante é, portanto, uma representação da jornada inescapável de toda a humanidade terá que fazer. É uma alegoria da luta constante entre o conhecimento terreno e a necessidade de orientação divina para alcançar a verdadeira compreensão e a salvação. Ele nos mostra que, para navegar pelos desafios da vida e superar as tentações que nos desviam do caminho, precisamos de um guia que transcende a sabedoria humana e nos leva à luz da verdade celestial.
Beatriz é a ciência divina, o ensinamento do Espírito contido nas Escrituras, que apresenta a graça salvadora em Jesus Cristo, o maior presente de Deus aos homens, para conduzi-los ao reino de Deus (Paraíso).
O fato de “Dante” tomar “Virgílio” como “seu guia” é um símbolo de toda a raça humana deveria usar toda a sua filosofia e progresso na ciência, colocando-a sob a tutela elementar de Deus, para que possa ser conduzido à verdade superior que a libertará do inferno e a elevará ao céu.
CONCLUSÃO:
Dante mostra a jornada inescapável que toda a pessoa terá que fazer. A questão é quem será o guia? A razão? A ciência? A Filosofia? A religião? E essa resposta não pode ser encontrado no secularismo Virgiliano! A razão diz a Dante: sou nova nisso. No Evangelho de João 14, Tomé faz a pergunta fundamental: mostra-nos caminho? E Jesus respondeu: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim.”Em Atos 4.12, o Apostolo Pedro diz: “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos”.
A consciência não é um guia seguro. A filosofia e todo conhecimento humano, acumulado e por mais que ele avance, não pode jamais ser um guia seguro. Em 1 João 5:20 lemos que: “E sabemos que já o Filho de Deus é vindo, e nos deu entendimento para que conheçamos ao Verdadeiro; e no que é Verdadeiro estamos, isto é, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna”.
[1] Anselmo escreve, no final do primeiro capítulo e no início do segundo capítulo de sua obra Proslogion:
[2] A patrística, é o estudo da vida e da teologia dos pais da igreja. Homens santos do passado que tiveram contato direto e indireto com os primeiros cristãos, esse primeiros vias são considerados até o século II. Os outros pais são mais tardios até século IV.
[3] Autor do “Paraiso Perdido”, e o Paraiso recuperado” e o “Sansão Agonista”; obras disponíveis em português.
[4] O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, Romance por C. S. Lewis
[5] Dante escolhe Virgílio (70 a.c – 19 d.c) como guia na Divina Comédia principalmente por três razões: Virgílio era o maior poeta latino da antiguidade, conhecido por suas obras; (Eneida, Éclogas (ou Bucólicas), e as Geórgicas). Na Eneida ele descreve a jornada de Eneias e inclui uma visão do mundo dos mortos.
Dante também admirava a sabedoria e o conhecimento de Virgílio, que o ajudavam a entender as complexidades da sua jornada espiritual e a estrutura do inferno. Além disso, Virgílio representa a razão e a sabedoria clássica, em contraste com a fé e a graça divina que Dante busca na sua jornada
[6] Dantesco: O mesmo que: pavorosa, ameaçadora, diabólica, espantosa, fantasmagórica, fantástica, grotesca, medonha, monstruosa. Estou usando como algo fantástico, grandioso e tremendo.
[7] https://digitaldante.columbia.edu/dante/divine-comedy/inferno/inferno-9/
Dante, o peregrino, demonstra pela primeira vez falta de confiança em seu guia, e Dante, o poeta, nos dá novas e preocupantes informações sobre o passado de seu personagem Virgílio, que agora conta ter sido “conjurado” ao inferno mais profundo pela feiticeira tessália Erictho.
[8] https://digitaldante.columbia.edu/dante/divine-comedy/inferno/inferno-9/
[9] https://www.owleyes.org/text/dantes-inferno/read/canto-4#root-422363-1
[10] O purgatório é uma doutrina católica. Mas podemos entender ele como uma busca de perfeição moral. Ao que podemos comparar ao progresso da santificação protestante. Para o ímpio é uma construção de moralidade imperfeita e relativa, pois não há bondade no coração humano sem a graça divina.