Série de sermões expositivos sobre O Céu. Sermão Nº 165 – O sexto dia da criação: a criação do homem (Parte 139). Gn 1:27: a Bíblia versus o Secularismo (Parte 92). Pregação do Pastor Jairo Carvalho em 02/07/2025.
INTRODUÇÃO
Pregar um sermão sobre o Terceiro Círculo do Inferno de Dante sob uma ótica protestante é um trabalho de fôlego, que se assemelha mais a uma pequena tese teológica do que uma série de sermões. A riqueza simbólica, teológica e filosófica contida no Canto VI da “Divina Comédia” é um campo fértil para a reflexão cristã. A essa altura muitos devem perguntar: Por que um sermão protestante deve se debruçar sobre a obra de um poeta católico medieval? Não temos tudo o que precisamos na Palavra de Deus, que é a nossa única regra de fé e prática (Sola Scriptura)?” A pergunta é justa e a resposta é um sonoro “sim”! A Bíblia é completa, suficiente e inerrante.
Contudo, o princípio da Graça Comum, ensinado por reformadores, lembra-nos que toda a verdade é verdade de Deus, onde quer que se encontre. Deus, em sua soberania, permite que até mesmo fora da revelação especial das Escrituras, a arte, a literatura e a filosofia possam servir como espelhos. Espelhos que, embora às vezes embaçados ou distorcidos, podem nos forçar a confrontar a realidade de nosso próprio coração e a beleza da verdade do Evangelho de uma maneira nova e poderosa.
Dante, com sua imaginação teológica formidável, oferece-nos um desses espelhos para a verdade Bíblica. A “Divina Comédia” é a história da jornada de um homem, o próprio Dante, através do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. É uma alegoria da alma que, perdida em uma selva escura de pecado, é guiada pela razão humana (Virgílio) e pela revelação divina (Beatriz) de volta para a comunhão com Deus. Hoje, nós desceremos com ele ao Terceiro Círculo do Inferno, o lugar reservado aos gulosos.
- O diagnóstico da gula moderna.
Estamos nessa caminhada como Dante e seu Guia, o poeta Virgílio, que representa a razão, que o guia pelo inferno. Já passamos pela antessala do inferno, onde está a multidão dos indecisos e covardes, sendo atormentada por vermes e correndo atrás de uma bandeira sem insígnia, revelando a falta de decisão em vida. Depois passamos pelo primeiro círculo do inferno, o limbo, onde estão aqueles que não ouviram falar do evangelho, e dos pagãos virtuosos, que mesmo tendo a iluminação da razão não ganharam o paraíso. Passamos também pelo segundo círculo do inferno onde estão os luxuriosos, aqueles que se entregaram aos desejos da carne, sendo condenados à escuridão de arremessados pelas tormentas no inferno.
Agora estamos chegando ao Terceiro Círculo do Inferno de Dante, no Canto V, onde será castigado o pecado da Gula. O pecado da Gula não é uma mera condenação do excesso alimentar, mas um diagnóstico profundo da idolatria do apetite — um mal que assume novas formas em nosso tempo e cuja única cura é o evangelho. A Gula, como um desejo incontido é diagnosticada no Consumismo moderno da religião: a busca insaciável pelo “novo”, pelo entretenimento, como uma forma de idolatria do ventre, vivemos hoje a tragédia do consumismo gospel. Já a Gula Digital e Informacional se caracteriza pelo consumo vicioso de mídias sociais, notícias e entretenimento. A “chuva” de notificações e a “lama” do conteúdo vazio que nos dessensibiliza. A palavra que foi escolhida como a palavra do ano de 2024 pelo Dicionário Oxford[1] foi “cérebro podre”, mostrando a superficialidade das mídias e seus efeitos negativos sobre o cérebro.
Também temos hoje a Gula Emocional e Relacional, que é a a busca por preencher o vazio existencial com experiências, relacionamentos superficiais ou vícios. Muitos vícios viraram hobby, e o que antes era destrutivo agora se torna apreciado. A gula é uma espécie de hedonismo contemporâneo. A busca pelo prazer imediato a qualquer preço, como uma fuga da realidade do pecado e da necessidade de um Salvador.
- A natureza vil do pecado.
Dante, influenciado pelo pensamento de São Tomás de Aquino, via a gula como um pecado de incontinência, uma incapacidade de controlar os desejos mais básicos. Neste contexto, o Terceiro Círculo torna-se um espelho sombrio daquilo que a alma humana pode se tornar quando o desejo deixa de ser orientado pelo bem e passa a imperar como tirano. Dante, ao descrever este ambiente, não apenas lança luz sobre os condenados, mas também revela o diagnóstico de uma sociedade que se perde no excesso e na superficialidade. Aqui, a gula não se limita ao alimento (comida e bebida), mas se expande para todos os âmbitos do consumo imoderado: a sede insaciável de experiências, de novidades, de afirmação, de conexão instantânea — tudo isso revela uma alma que já não sabe mais repousar nem esperar.
As punições infligidas são, em última análise, reflexos internos exteriorizados. A lama que os envolve é a materialização do entorpecimento moral, das escolhas feitas sem olhar para além do próprio apetite. Não há prazer, apenas o eterno retorno do mesmo desejo frustrado. O frio, a escuridão e o peso da umidade constante são mais do que elementos físicos — funcionam como metáforas do isolamento e da insensibilidade crescente diante do sofrimento, próprio e alheio. O esquecimento de si mesmo, tão buscado nos prazeres rápidos, aqui se transforma em uma consciência aguda da ausência de sentido, tornando cada instante uma eternidade de vazio.
O Terceiro Círculo, portanto, não apenas castiga a gula, mas expõe suas raízes e suas ramificações — um convite à reflexão sobre os perigos do excesso, da idolatria do prazer e do esquecimento das coisas divinas. No Terceiro Ciclo do inferno, almas condenadas estão debaixo da chuva eterna e da Lama Fétida. E temos a inversão das bênçãos divinas. A chuva, por exemplo, aqui no inferno é uma chuva maldita. A lama podre é trazida como símbolo da degradação da Imago Dei (a Imagem de Deus), com paralelos com Gênesis (pó) e os Salmos (lamaçal). As almas condenadas também têm a perda dos sentidos: a cegueira e a surdez das almas são reflexos de uma vida egoísta, e centrada em si mesma.
Ao adentrarmos mais profundamente esse círculo, é impossível não perceber a atmosfera carregada e as figuras atormentadas que se arrastam em meio ao frio e à podridão. Não há consolo, apenas o peso de uma fome insaciável, que jamais encontra alívio. Cada alma ali é presa de um desejo que se voltou contra si mesma, tornando-se tanto punição quanto reflexo de sua própria existência terrena. O vazio interior, outrora preenchido por excessos e distrações, agora é invadido por uma sensação de abandono absoluto.
A chuva incessante que cai não refresca nem purifica, ela sufoca, mistura-se à lama que cobre e corrompe tudo, fazendo ecoar a verdade de que aquilo que se busca com voracidade, sem discernimento, transforma-se em sua própria sentença. O ambiente é de repetição, de ciclos viciosos, onde nada sacia e nada floresce, nem se renova. As vozes que outrora se erguiam para celebrar banquetes, bebedeiras, músicas, baladas, festas, agora apenas murmuram lamentos, distantes, abafadas pela tempestade perpétua.
É nesse ambiente de degradação e miséria espiritual que se revela o verdadeiro significado da gula — não mais apenas como pecado pessoal, mas como símbolo de uma sociedade inteira que consome sem medida, sem consciência dos limites e das consequências. Eis o campo sombrio onde as almas experimentam os extremos do desejo e da frustração, preparando o caminho para os encontros e revelações que virão a seguir.
- A idolatria da gula.
O apóstolo Paulo, em Filipenses 3:18-19, com lágrimas nos olhos nos adverte sobre os “inimigos da cruz de Cristo”. E qual é a característica principal desses inimigos? Ele nos diz: “O seu deus é o ventre”. Que declaração chocante e profunda. O deus deles é o estômago. O apetite. O desejo. O “eu quero, eu preciso, eu tenho que ter”. O Terceiro Círculo de Dante, visto através das lentes da Escritura, revela que a Gula é muito mais do que comer demais. É uma condição do coração. É a idolatria do apetite desordenado. É a entronização do “ventre” — seja ele um desejo por comida, bebida, por poder, por posses, por informação ou por prazer — no lugar que pertence somente ao Deus vivo.
E este mal antigo, descrito por Dante há 700 anos, assume formas novas e perigosas em nossa cultura moderna, e nos chama a um exame de consciência urgente e a nos apegarmos desesperadamente à única cura: a graça de Jesus Cristo que verdadeiramente satisfaz.
- Anatomia do Inferno da gula
Ao entrar no Terceiro Círculo, a primeira coisa que nos assalta não é o fogo, como poderíamos esperar, mas uma tempestade. Dante escreve: “uma chuva eterna, amaldiçoada, fria e pesada”. Granizo grosso, água suja e neve caem incessantemente sobre as almas nuas que jazem em uma lama vil e fétida. Na Bíblia, a chuva é quase sempre um símbolo da bênção de Deus. É o que faz a terra produzir, o que sacia a sede, o que representa o derramar do Espírito Santo. Em Oséias 6:3, lemos: “Ele virá a nós como a chuva, como a chuva da primavera que rega a terra”.
Porém, aqui, no inferno da Gula, a bênção é pervertida em maldição. A chuva não nutre, ela atormenta. Não limpa, mas se mistura à sujeira. Não é um dom gracioso, mas um castigo monótono e sem fim. Esta é a primeira lição teológica do contrapasso, a justiça poética de Dante: o pecado sempre perverte as boas dádivas de Deus. Em vida, os gulosos transformaram a dádiva do alimento (comida e bebida) — destinado à nossa nutrição, ao nosso deleite moderado e à comunhão — em um ídolo. Eles buscaram uma variedade infinita de sabores, texturas e prazeres em todas as áreas da existência humana. Agora, na morte, estão presos a uma monotonia sensorial infernal: um único som (a chuva e os latidos; um único cheiro (o fedor da lama); uma única sensação (o frio cortante); um único gosto (a própria sujeira). O pecado promete variedade e liberdade, mas sempre entrega monotonia, culpa e escravidão.
- A inversão da criação.
E a lama? A lama fétida “que tresanda a podre”. Biblicamente, o homem foi feito do pó da terra (Gênesis 2:7). Fomos formados da matéria, mas soprados com o fôlego da vida de Deus, feitos à Sua imagem e semelhança (Imago Dei). A nossa dignidade reside nesta união do terreno e do celestial. O guloso, ao fazer do ventre o seu deus, nega o celestial e se entrega completamente ao terreno. E assim, na justiça de Deus, ele é devolvido à matéria em sua forma mais degradada. Não mais o “pó” da criação, mas a “lama” da corrupção. Ele se torna aquilo que adorou: o resíduo de seu próprio consumo. Jaz passivo, como um “porco na lama”, tendo perdido a dignidade vertical de um portador da imagem de Deus.
- A trindade profana do desejo.
Nesta paisagem de degradação, encontramos um monstro. Não um demônio tradicional, mas Cérbero[2], o cão de três cabeças da mitologia grega, aqui transformado em um agente do juízo divino. Ele é a personificação da própria Gula. Suas três gargantas latem furiosamente, uma imagem da insaciabilidade do desejo. O pecado nunca está satisfeito. Um desejo satisfeito apenas dá à luz a três outros. O coração que serve ao ventre nunca encontra paz, apenas o latido constante por “mais”.
O teólogo Agostinho, em suas “Confissões”, fala sobre a “concupiscência dos olhos, a concupiscência da carne e a soberba da vida”, ecoando a Primeira Epístola de João. As três cabeças de Cérbero representam essa trindade profana do desejo que nunca pode ser saciada. Ele não apenas late. Ele ataca as almas, “esfola-as, esquarteja-as e espedaça-as”. Isso nos ensina uma verdade terrível: o pecado que você alimenta acabará por te devorar. Os prazeres que você persegue fora da vontade de Deus, um dia, irão se voltar contra você com garras e dentes.
- O inferno: o monstro faminto.
E como Virgílio, o guia de Dante, acalma a besta? Ele não luta com ela. Ele simplesmente se abaixa, pega um punhado daquela mesma lama fétida e a joga nas gargantas vorazes do monstro. E Cérbero a devora e se cala, “como um cão que anseia pela comida e, ao mordê-la, se acalma”. A lição é esmagadora. O inferno se alimenta dos nossos pecados. O apetite do inferno é tão vil, tão degradado, que se satisfaz com a própria sujeira. O pecado não busca o que é bom, belo ou verdadeiro; ele anseia pela própria matéria de sua corrupção. Isso nos lembra da advertência de Deus a Caim em Gênesis 4:7: “o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo”. Cérbero é a imagem desse desejo agachado, esperando para nos devorar, e se alimentando da nossa própria ruína, da nossa completa desgraça.
Essa é a anatomia do inferno interior que a Gula cria. É a inversão das bênçãos de Deus em maldições. É a degradação da imagem de Deus em lama. É a escravidão a um apetite insaciável que, no final, alimenta-se da nossa própria alma. Esta não é apenas uma história medieval. É um alerta para cada um de nós.
CONCLUSÃO:
Dante como um intérprete bíblico, descreveu a anatomia do Terceiro Ciclo do inferno, em seu poema, demonstrando perfeitamente o mesmo sentimento que o Espírito Santo, colocou no apóstolo Paulo ao escrever ao Filipenses capítulo 3.
1 Finalmente, irmãos meus, regozijai-vos no Senhor. Não me aborreço de escrever-vos as mesmas coisas, e é segurança para vós.
2 Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus obreiros, guardai-vos da cortadura;
3 Porque a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne.
4 Ainda que também podia confiar na carne; se algum outro cuida que pode confiar na carne, ainda mais eu:
5 Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; segundo a lei, fui fariseu;
6 Segundo o zelo, perseguidor da igreja, segundo a justiça que há na lei, irrepreensível.
7 Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo.
8 E, na verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como escória, para que possa ganhar a Cristo,
9 E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem de Deus pela fé;
10 Para conhecê-lo, e o poder da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições, sendo feito conforme à sua morte;
11 Para ver se de alguma maneira eu possa chegar à ressurreição dentre os mortos.
12 Não que já a tenha alcançado, ou que já seja perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo para o que fui também preso por Cristo Jesus.
13 Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim,
14 Prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.
15 Por isso todos quantos já somos perfeitos, sintamos isto mesmo; e, se sentis alguma coisa de outra maneira, também Deus vo-lo revelará.
16 Mas, naquilo a que já chegamos, andemos segundo a mesma regra, e sintamos o mesmo.
17 Sede também meus imitadores, irmãos, e tende cuidado, segundo o exemplo que tendes em nós, pelos que assim andam.
18 Porque muitos há, dos quais muitas vezes vos disse, e agora também digo, chorando, que são inimigos da cruz de Cristo,
19 Cujo fim é a perdição; cujo Deus é o ventre, e cuja glória é para confusão deles, que só pensam nas coisas terrenas.
20 Mas a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo,
21 Que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas.
[1] A expressão “brain rot”, traduzida como “cérebro podre” em português, foi escolhida como a palavra do ano de 2024 pelo Dicionário Oxford. A expressão descreve a deterioração mental ou intelectual causada pelo consumo excessivo de conteúdo online considerado superficial e pouco desafiador, especialmente nas redes sociais.
Essa escolha reflete a crescente preocupação com os impactos negativos do consumo excessivo de conteúdos digitais na saúde mental e no funcionamento cognitivo. O termo “brain rot” ganhou popularidade nas redes sociais, onde jovens o utilizam para descrever a sensação de cansaço mental e dificuldade de concentração após passar longos períodos navegando em plataformas como TikTok e Instagram.
[2] Cérbero, na mitologia grega, é um cão de três cabeças que guarda a entrada do mundo inferior, o reino de Hades. Ele impede que os mortos saiam e os vivos entrem