Série de sermões expositivos sobre O Céu. Sermão Nº 118 –  O sexto dia da criação: a criação do homem (Parte 94).  Gn 1:27: a Bíblia versus o Secularismo (Parte 44). Pregação do Pastor Jairo Carvalho em 20/03/2024.

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INTRODUÇÃO

Karl Marx tinha uma predileção pelo Fausto de Goethe, ele apreciava o demônio Mefistófeles, que dizia que “tudo o que existe deve perecer”.

Embora o sentido que o demônio fala no poema seja outra. A ideia de que nada no mundo existencial será eterno, e tudo é fugaz.

O Fausto[1], mostra a tragédia da modernidade encenada e permite entrever os dilemas filosóficos e políticos e religiosos que definem o homem moderno.

Os críticos costumam usar a Bíblia para ajudar a explicar a literatura, mas, em ocasiões mais raras, a literatura pode nos ajudar a compreender a Bíblia.

Dezenas de estudos examinam a influência bíblica no Fausto de Goethe, que – no prólogo, ambientado no céu – parafraseia o Livro de Jó.

Jó é um livro difícil para os leitores modernos; a ideia de uma aposta divina às custas de um homem virtuoso é perturbadora, e a história é ainda mais opaca devido ao seu cenário antigo.

Mas assim como precisamos saber algo sobre Jó para ler Fausto, Goethe ajuda nossa leitura de Jó. Ele reformula a história em termos modernos e nos ajuda a ver em Jó o desafio de compreender a fé e o desespero que sofremos.

A moderna ilusão de liberdade é a essência do drama de Goethe. Goethe nasceu em 1749, na festa de Santo Agostinho — um momento auspicioso, pois Fausto é, de certa forma, a grande realização literária da antropologia de Agostinho.[2]

A caracterização de Fausto no prólogo da obra lembra a declaração inicial de Agostinho nas Confissões: “Tu nos fizeste, ó Senhor, para ti, e o nosso coração está inquieto até que repouse em ti”.

Para situar o problema de Jó num contexto moderno, Goethe precisava de um protagonista[3] que exemplificasse o coração inquieto de Agostinho, cujo alimento não é terreno e que deve continuar a errar e a lutar até que Deus o conduza à clareza, como o Senhor promete no prólogo[4].

  1. Um resumo do romance

As principais personagens da Parte I são:

  1. Henrique Fausto (Heinrich Faust), um sábio erudito. Esse personagem literário é possivelmente baseado na vida do mago Johann Georg Faust (c.1480-c.1540);
  2. Mefistófeles, um demônio;
  3. Margarida (Margarete ou Gretchen), o amor de Fausto;
  4. Marta (Marthe), a vizinha de Margarida;
  5. Valentim (Valentin), irmão de Margarida;
  6. Wagner, assistente de Fausto.

A Parte I é uma história[5] complexa que abarca múltiplos cenários. Não está dividida em atos, mas sim em cenas.

Após um poema dedicatório e um prelúdio, a ação começa no Céu, onde Mefistófeles faz uma aposta com Deus: diz que poderá conquistar a alma de Fausto – um favorito de Deus -, um sábio que tenta aprender tudo que pode ser conhecido.

A próxima cena ocorre no estúdio de Fausto, onde o erudito reflete sobre as limitações do conhecimento científico, humanista e religioso, e sobre suas tentativas de usar a magia (ocultismo) para chegar ao conhecimento ilimitado.

Frente ao fracasso, considera o suicídio, mas muda de ideia ao escutar as celebrações de Páscoa na rua. Decide então sair a passear com seu assistente, Wagner, e ambos são seguidos por um cão vagabundo no caminho de volta a casa.

No interior do estúdio, o cão se transforma em Mefistófeles(diabo). Os dois chegam ao acordo – selado com sangue – de que Mefistófeles fará tudo o que ele quiser na Terra e, em troca, Fausto terá de servir o demônio no Inferno.

Mas há uma cláusula importante imposta por Fausto: a alma de Fausto será levada somente quando Mefistófeles criar uma situação de felicidade tão plena que faça com que Fausto deseje que aquele momento dure para sempre.

Após o pacto, o demônio o leva a uma taverna[6] em Leipzig – o Porão de Auerbach – onde se encontram com um grupo de estudantes bêbados. Fausto, porém, não encontra ali nada que lhe agrade.

Dali, os dois vão em presença de uma bruxa, em busca do elixir da juventude, que por meio de uma poção dá a Fausto a aparência de um homem jovem e belo. A bruxaria, o ocultismo, e criaturas mitológicas.

A imagem de Helena de Troia[7] aparece num espelho mágico, e sua beleza impressiona Fausto enormemente (Helena será personagem importante na Parte II).

Na rua, Fausto vê a bela Margarida (Gretchen), e pede que Mefistófeles a consiga para ele. Para o demônio é uma dura tarefa devido à natureza pura da menina, que ele terá que corromper.

A menina será seduzida com jóias e com a ajuda da vizinha Marta, Mefistófeles consegue um encontro no jardim entre Fausto e Margarida. A moça tem medo de levá-lo ao seu quarto devido à mãe.  A falta de pudor da modernidade.

Fausto dá uma poção do sono a Margarida para adormecer a mãe, mas, tragicamente, a poção termina matando-a e que depois mata Valentim o irmão da amada margarida.

Margarida tem o pressentimento de estar grávida, e tem um filho de Fausto, mas tomado pelo sofrimento do abandono dele, e acaba matando o filho e acaba presa e morta.

Valentim está enfurecido pela relação da irmã com Fausto e o desafia a um duelo. Ajudado por Mefistófeles, Fausto mata Valentim, que antes de morrer lança uma maldição contra a irmã.

Margarida busca conforto espiritual numa catedral, mas é atormentada por um espírito maligno que a enche de sentimento de culpa.

Para distraí-lo de Margarida, Mefistófeles leva Fausto à festa da Noite de Santa Valburga (Walpurgisnacht), onde celebram juntos bruxas e demônios.

Uma jovem bruxa tenta seduzir Fausto em vão. Enquanto isso, Margarida afogou o filho recém-nascido num sinal de desespero e foi condenada à morte pela justiça.

Fausto sente-se culpado por isso e acusa Mefistófeles, que replica que é Fausto quem tem toda a culpa. O demônio consegue a chave da cela de Margarida e Fausto tenta fazer com que ela escape, mas ela resiste porque percebe que ele já não a ama.

Ao ver Mefistófeles, Margarida grita “Meu Deus, toda me entrego a teu juízo!”.[1] Mefistófeles tira Fausto da cela e diz que “Foi julgada!”.[1] Em seguida, um coro celestial afirma “Salvou-se!”,[1] indicando que a pureza de Margarida salvou sua alma.

Mas a pergunta fica no ar, que pureza? O conceito de pureza muda com a modernidade.

Rica em alusões clássicas, na Parte II o enredo romântico da primeira é deixado de lado.

De fato, é uma obra totalmente diferente da primeira quanto aos temas abordados, que abrangem agora aspectos políticos e sociais. Fausto desperta junto a fadas e inicia um ciclo de aventuras dividido em cinco atos, cada um com um tema diferente.

No final Fausto consegue ir ao Paraíso, por haver perdido apenas metade da aposta com o demônio.

Anjos, como mensageiros da vontade divina, anunciam no final do Ato V “Cantemos em coro, Da vitória a palma, O ar está puro: Respire esta alma!”,[1] e levam a parte imortal de Fausto ao Céu, derrotando Mefistófeles.

O desfeche da história distorce completamente as verdades das Escrituras, revelando uma salvação por meio do esforço humano. E Fausto e um falso cristão, um meio convertido.

  1. O homem faustiano.

Fausto não é mais um homem bom – como às vezes é caracterizado, como Jó, a quem a Bíblia chama de “o maior de todos os homens do Oriente.

Parafraseando Jó, Goethe começa Fausto na Corte Celestial, onde Mefistófeles (diabo) reclama que os homens atormentam uns aos outros tão intensamente que ele nem quer incomodá-los.

Em resposta, o Senhor pergunta ao diabo se ele conhece “seu servo” Fausto, ao que o diabo responde:

“Ele te serve de uma forma curiosa; não são terrestres a sua comida e bebida… e tudo, de perto e de longe, não corresponde ao seu coração profundamente comovido.”

O Senhor rebate: “O homem errará enquanto se esforçar”. Assim começa a aposta pela alma de Fausto.

Para seu poema, Goethe precisava de um protagonista que exemplificasse o coração inquieto de Agostinho porque, deixados à própria sorte, os homens caem na apatia de uma busca insaciável por riqueza, poder, prazer e conhecimento, como o Senhor diz a Mefistófeles.

A transigência (complacência) é o pecado caracteristicamente moderno. A condição humana não mudou, nem pode mudar, enquanto os homens morrerem.

Mas o homem moderno é mais susceptível à ilusão de que pode moldar a sua própria identidade e fazer o seu próprio destino.

O homem moderno pode convencer-se de que está sozinho no universo, improvisando a sua ética e identidade à medida que avança. Ele pode se considerar o senhor do universo através da ciência.

Ele pode até imaginar que a razão, a ciência do cérebro acabará por resolver as questões existenciais que têm perturbado a sua espécie durante milénios.

Por trás dessa complacência esconde-se uma antipatia pela vida, articulada espirituosamente pelo demônio de Goethe.

Esses conceitos floresceram no mundo de Goethe. Tanto em termos racionais, sociais como científicos, Goethe estava à beira da modernidade.

Tornou-se uma sensação literária em 1774 com A Paixão do Jovem Werther , o romance mais vendido no final daquele século. Napoleão leu a tradução do livro.

O Jovem Werther, que era possuidor da liberdade de inventar sua própria identidade, Werther mergulha em uma introspecção mórbida e em um amor desesperado antes de se matar.

Esse sentimento está por traz do conceito moderno, de criar uma nova identidade, principalmente na sexualidade dos indivíduos.

Fausto, o protagonista por excelência do Goethe maduro, quase o faz. Em vez disso, Fausto luta por uma vida.

Goethe publicou a primeira parte do Fausto em 1807, enquanto Napoleão impunha à Europa a visão revolucionária do iluminismo francês de que a sociedade poderia ser transformada pela razão, deixando de lado a fé e a tradição.

A revolução científica do século XVIII prometeu igualmente transformar a vida quotidiana – como quando o físico francês Pierre-Simon LaPlace afirmou que a sua tecnologia mecânica poderia, em última análise, tornar os humanos oniscientes e isso mudaria o comportamento da sociedade.

Os contemporâneos de Goethe já tinham absorvido a nova fé na ciência, talvez com menos reservas do que os secularistas de hoje, que tiveram a oportunidade de colocar algumas limitações na busca da razão.

A inversão da premissa bíblica.

Para contextualizar este estranho mundo novo, Goethe aplica o maravilhoso conceito de inverter a premissa do Livro de Jó.

Para tentar o homem justo de Uz, o Satanás bíblico tira dele tudo o que o homem antigo poderia precisar (riqueza, filhos e saúde). Em vez disso, o Mefistófeles (diabo) de Goethe tenta Fausto, oferecendo-lhe tudo o que o homem moderno poderia desejar.

Os modernistas, sugere Goethe, alcançaram um tipo de liberdade inimaginável para os antigos, mas tornaram-se vítimas dessa falsa liberdade.

Este paralelismo entre Jó e Fausto é profundo e rico. Jó era um homem “de todo o coração” e “justo” que “evitava o mal”.

Fausto está livre do pecado da autocomplacência, que Goethe considera o pecado decisivo dos modernos.

Jó estará perdido se ele lamentar demais sua perda e amaldiçoar a Deus; Fausto estará perdido se desfrutar excessivamente de sua bênção – que seria encontrar um prazer que o satisfizesse.

De acordo com seu pacto com Mefistófeles, sua alma estará perdida caso ele fique tão satisfeito com os presentes do diabo a ponto de lamentar a curta duração desse prazer.

Jó lamenta a perda dos filhos que constituem a continuidade da sua própria vida; o Fausto, sem filhos, luta para abraçar a vida – é isso que ele deseja, inicialmente não é sexo, dinheiro ou fama que ele quer – mas não consegue encontrar sentido na vida.

Quando Fausto faz a proposta para Mefistófeles, ele se distancia da piedade do Jó bíblico que era fiel. Fausto agora vai se envolver com uma amante a quem ele seduz.

Antes que Fausto esteja pronto para a grande aposta com o diabo, porém, ele primeiro deve rejeitar o gnosticismo (a idolatria da razão, o desejo de conhecimento oculto e científico); na verdade, ele deve aprender que esta forma de idolatria é o repúdio à vida.

Faustiana é a aflição espiritual que o protagonista de Goethe deve superar para ser um adversário digno do diabo.

Como um homem importante da cientista, Goethe compreendeu bem as pretensões do mundo moderno de usar a razão para resolver e dominar tudo.

Considerando que o ocultismo estava ganhando espaço no coração dos nomes da ciência, Fausto faz a tentativa fracassada de usar os poderes do demônio para dominar a natureza, por meio da magia.

Coisa em nossa cultura marxista tem ganhado cada vez mais espaço. O satanismo tem sido apreciado tanto por Marx e por grande parte de seus camaradas.

A ilusão do progresso infinito.

O início da salvação de Fausto é o seu reconhecimento de que a visão sedutora da “harmonia total e imortal” é uma ilusão. Ele pergunta:

Oh! como posso contemplar -te, natureza sem limites? onde te abraçar?

Vós, fontes de toda a vida, cujas marés vivas

Alimentam o céu e a terra: o seio murcho anseia

Para saborear seu frescor! Vocês fluem brilhando,

E ainda assim eu ofego em vão.

O homem vê apenas “a veste viva de Deus” (compare o Salmo 102), mas não consegue compreender completamente a própria natureza, como o Espírito da Terra adverte Fausto.

A tentativa gnóstica de alcançar o transcendente através da penetração nos segredos da natureza só pode levar ao desespero e leva Fausto ao suicídio. Para Fausto, a busca pelo conhecimento oculto leva apenas ao repúdio à vida.

A complacência que Goethe coloca em primeiro lugar na lista de ofensas começa com a nossa adoração idólatra dos nossos próprios poderes racionais de descoberta, a nossa presunção de que a terra não é do Senhor, mas nossa.

A nova religião da ciência que floresceu no final do século XVIII ofereceu ao antigo gnosticismo uma nova embalagem.

A razão não guiada apenas permite que o homem seja mais bestial do que qualquer animal, como brinca Mefistófeles.

A AUTOCOMPLACÊNCIA surge da AUTOADORAÇÃO, e é por isso que Goethe coloca a preguiça (autoindulgência) no topo da lista dos pecados capitais.

É, portanto, a inquietação agostiniana de Fausto que lhe permite ser salvo. Ele não é seduzido pelas falsas promessas da fé substituta do gnosticismo, ou não haveria drama, nem ele alcança a fé, pois nesse ponto o drama terminaria.

Como os patinadores que aceleram sobre o fino gelo marinho apenas rápido o suficiente para evitar que ele se quebre, Fausto permanece na fronteira da fé.

Arrasado pelo encontro com o Espírito da Terra, ele leva um frasco de veneno aos lábios, mas é chamado de volta à vida pelo som dos sinos da igreja na manhã de Páscoa.

Ele recorda o sentimento de fé, embora já não consiga acreditar em si mesmo. Mais tarde, quando sua amante Gretchen pergunta sobre sua religião, ele oferece um desvio panteísta.

A vida de Goethe, observou um grande teólogo judeu-alemão[8], foi “uma passagem ao longo de uma crista entre dois abismos. Entre a fé e a razão.

Ele conseguiu manter a terra sólida e duradoura firmemente sob seus pés durante toda a vida.

Qualquer outra pessoa certamente teria caído em um dos abismos que se abrem em ambos os lados da cordilheira, a menos que fosse sustentado pelos braços do amor divino que o ajudou a dar o salto para o eterno.”

Tal como Goethe, Fausto permaneceu suspenso entre a fé e o egoísmo racional. Rosenzweig brinca que Nietzsche não teve tanta sorte. Goethe passou, “mas tente segui-lo”.

Uma pequena placa memorial foi erguida neste cume. A placa alerta qualquer futuro viajante que tenha subido o cume contra outra tentativa depois de Goethe de seguir o caminho de Goethe, confiando no passo dos próprios pés, como um filho puro desta terra, sem as asas da fé e do amor.

Para ampliar essa imagem, Fausto está entre dois abismos. De um lado está a fé, que tornaria o drama irrelevante (resolveria sua angústia), e do outro, o culto aos seus próprios poderes, que o trairiam nas garras do diabo.

Fausto perdeu a fé na ciência, o ídolo preferido do homem moderno, e diz isso em suas primeiras falas no palco (“Eu, pobre tolo, sou tão estúpido quanto antes de começar a estudar”), concluindo: “Podemos não sei de nada.”

Embora ele tenha muitas dúvidas, mas a possibilidade de ele voltar a crer o mantém vivo. O antigo Jó começa com um teste de sua fé; o Jó moderno começa abandonando a fé no ídolo da ciência.

Fausto não tem fé, mas também não é enredado pelos falsos substitutos da fé. Ele não tem vida, mas deseja desesperadamente entrar nela. A busca de Fausto pelo significado da vida é o tema da tragédia propriamente dita.

O fracasso em sua busca pelo conhecimento é apenas um prelúdio para a ação dramática principal, que começa com seu pacto com Mefistófeles.

Inicialmente Fausto sente a sua inquietação não como um anseio por Deus, mas como um anseio pela segunda melhor coisa: a vida, a vida real da humanidade, em oposição ao pobre substituto da vida encarnado na busca pelo conhecimento.

Tornou a vida odiosa para Fausto, como ele diz a Mefistófeles:

A existência parece um fardo a ser detestado,

A morte a ser desejada, a vida uma piada odiosa.

Ele está pronto para amaldiçoar tudo, numa aparente emulação de Jó 3:

Maldito seja o bálsamo da uva!

Amaldiçoado, o maior prêmio do escravo dos amantes!

Uma maldição sobre a fé! Uma maldição sobre a esperança!

Uma maldição à paciência, acima de tudo!

Mas a morte ainda é “um convidado indesejável”, observa Mefistófeles, que sabe que Fausto, embora não seja capaz de ter fé, foi salvo pela memória (que é o mesmo que a esperança) da fé.

Ele oferece a Fausto seu contrato padrão (“Eu sirvo você aqui e você me serve na vida após a morte”), que Fausto rejeita com desprezo:

O que você pode dar,

seu demônio miserável? pode o elevado espírito do homem,

Cheio de anseios imortais, ser

compreendido por tal como tu és?

Em vez disso, ele propõe uma barganha totalmente diferente:

Se alguma vez eu me deitar complacente em uma cama de indolência,

então deixe-me terminar naquele mesmo momento.

Se pela lisonja você puder me enganar

Com uma auto-admiração complacente,

E me enganar com prazer,

Então que esse seja meu último dia!

Essa é a aposta que lhe ofereço!

O que Fausto quer agora não é conhecimento, mas vida prazerosa:

O que é distribuído a toda a humanidade,

Eu desfrutaria no mais íntimo de meu ser,

Agarraria o mais elevado e o mais baixo com meu espírito,

E traria seu bem-estar e sua desgraça para meu próprio peito.

Mefistófeles responde a isso com espanto e desprezo. Meros mortais, diz ele a Fausto, não conseguem digerir a vida:

Acredite em mim, que durante milênios

Mastigou esta crosta dura:

Do berço ao túmulo

Nenhum homem jamais foi capaz de digerir esta massa fermentada!

Acredite em nossa espécie: tudo isso

Foi feito apenas para um Deus!

Ele se deleita na luz eterna.

Ele nos derrubou na escuridão,

Enquanto tudo o que você consegue é dia e noite.

A réplica de Mefistófeles é sutil e insidiosa, e oferece a Fausto três tentações principais:

primeiro, o amor puro da inocente Gretchen; que ele teve que seduzir.

Segundo, a beleza clássica (fecundidade artística) de Helena de Tróia[9];

E terceiro, a criação de uma nova terra e de um novo povo de acordo com os seus desejos. Tudo isso falha, pois o demônio não tem como cumprir promessas.

O amor sem responsabilidade leva à loucura, ao infanticídio e à execução de Gretchen sua amada[10].

O filho da união de Fausto com Helena de troia é muito instável para viver, e sua morte faz com que Helena volte às trevas.

E a maior tentação de Fausto, recuperar terras ao mar para que um povo livre possa “conquistar diariamente a liberdade e também a vida”, é envenenada pelos meios brutais necessários para fazer avançar o projeto. Uma pressagio do comunismo.

No final, a alma de Fausto é levada a Deus por anjos que cantam: Podemos redimir aquele que se esforça. A tragédia é o resultado da engenharia espiritual e também social.

Nem o amor romântico da tradição do Norte, nem a concepção clássica de beleza do antigo Sul, nem a sua união nas pessoas de Fausto e Helena serão suficientes.

O pior de tudo é a tentativa de pôr em prática o que Goethe ansiava no seu poema juvenil “Prometheus” – um novo homem livre do pecado da complacência, que “merece a liberdade e a vida porque deve conquistá-las todos os dias”.

Sua leitura do personagem de Fausto é consistente com importantes vertentes de interpretação do Livro de Jó. Fausto errou ao tentar arrancar segredos da natureza.

A interpretação judaica tradicional atribui um pecado análogo a Jó, pois os sábios judeus não podiam aceitar a ideia de que Deus infligiria tal miséria a um homem inteiramente inocente.

Como argumentou o rabino Joseph Soloveitchik em Halakhic Man , Jó peca ao exigir uma explicação de causa e efeito para sua miséria:

Jó, que se enfureceu contra o Céu porque procurou prestar contas do mundo e errou, aceita sobre si o julgamento divino. “Quem é que esconde conselho sem conhecimento?

Por isso pronunciei coisas que não entendia, coisas maravilhosas demais para mim, que eu não conhecia” (Jó 42:3).

Ele pecou com sua aventura orgulhosa e excessivamente ousada de captar e compreender o segredo do cosmos; ele confessa e volta a Deus com a descoberta do mistério do mundo criado e da sua incapacidade de compreender esse mistério. ‘Portanto abomino minhas palavras e me arrependo, visto que sou pó e cinza.’

Jó perdeu a riqueza, os filhos e a saúde, mas também perdeu a confiança de que pode influenciar Deus através de sacrifícios e outros atos de propiciação.

Como Fausto, ele perdeu o poder sobre a natureza e, como Fausto, sua resposta é repudiar a vida: “

Que pereça o dia em que nasci, e a noite em que foi dito: ‘Há um filho homem concebido.’ Que esse dia seja escuridão; não deixe Deus olhar para isso do alto, nem deixe a luz brilhar sobre ele.

A esposa de Jó já o aconselhou: “Amaldiçoe a Deus e morra”, o que Jó chama de “tolice”.

Foi uma tolice, pois o homem antigo percebeu um Deus remoto cujas ações eram indistinguíveis do destino, e amaldiçoar o próprio destino é uma tolice.

Jó não pode aceitar que o destino cego o tenha prejudicado, mas também não pode dirigir-se a Deus, pois Deus é uma força distante que deve ser respeitada, mas não amada.

Como observam vários críticos, embora os amigos de Jó usem os nomes genéricos para Deus, Elohim ou El Shaddai, Jó usa o nome pessoal YHWH.

O que constitui a virtude de Jó nessas circunstâncias? Por um lado, ele evita a resposta pagã, de amaldiçoar a Deus.

Por outro lado, ele evita a resposta dos seus amigos, que insistem que a simples causa e efeito devem explicar a sua situação. Identifique o pecado pelo qual Deus o puniu, dizem a Jó, e arrependa-se, e tudo ficará bem.

A descrição de Soloveitchik do pecado de Jó se aplica melhor aos seus amigos do que ao próprio Jó: embora Jó procure uma explicação para sua calamidade, ele se recusa a aceitar explicações fáceis.

Ele se recusa a culpar-se pelos pecados que deve ter cometido para merecer tal punição, pois não conhece tais pecados. Ele também não amaldiçoará seu destino.

Ele permanece, por assim dizer, num cume entre dois abismos, entre a exigência pecaminosa de conhecer a intenção mais íntima de Deus e o indiferentismo pagão para com Deus.

Jó ocupa assim uma posição ambivalente semelhante à de Fausto. Ele não ficará satisfeito nem com a investigação pecaminosa nem com a mera resignação.

Jó não consegue resolver a tensão sozinho, e a resposta à sua pergunta vem na forma do aparecimento do próprio Deus.

Deus não precisa dar mais resposta do que a sua presença, e é o ato de endereço direto de Jó a Deus que transforma e redime o homem.

Isso é exatamente o que Deus exige de Jó: “Cinge agora os teus lombos como homem; pois eu te exigirei e tu me declararás”.

Talvez seja por isso que Jó e Fausto continuam a fascinar a imaginação literária. A sua luta interna, e não as meras circunstâncias externas das suas histórias, mostra as dificuldades dos melhores homens à beira da fé.

Se Fausto fosse um homem de fé ou um puro egoísta, seu personagem não teria interesse e não haveria drama. Se Jó fosse um santo que sofreu arbitrariamente, sua história não pertenceria à Bíblia.

Fausto é um homem extraordinário, imune às seduções de Satanás, que pode ser salvo se for fiel à inquietação agostiniana do seu coração.

A luta de Fausto pela vida ajuda-nos a romper o véu empoeirado dos tempos antigos e a ver em Jó a mesma disputa de vida e morte, fé e desespero que nós, modernos, devemos suportar.

[1] Fausto mostra a questão do poder e o conflito entre o homem x desejo de conhecer e “superar” à Deus, a tentação de comer da arvore do conhecimento e abandonar árvore da vida presente na figura de Mefistófeles) com a sua redenção. Uma das cena mais emblemáticas da literatura: “Luz, luz, mais luz “

[2] Como observa o principal estudioso alemão do Fausto, Jochen Schmidt.

[3] Protagonista é o personagem principal de uma narrativa, como obras literárias, cinematográficas, teatrais ou musicais. Sobre ela a trama é desenvolvida. As principais ações são realizadas por ela ou sobre ela

[4] Prologo:  Sua finalidade é contextualizar o leitor sobre o assunto. Em teatro grego antigo, o prólogo era uma espécie de monólogo de um dos personagens para a plateia, que antecedia a peça propriamente dita, com a apresentação de elementos importantes para o entendimento do enredo.

[5] Primeira edição de Faust, eine Tragödie, de 1808

[6] Estabelecimento que vende bebidas alcoólicas; taberna. Restaurante pequeno cujas refeições são baratas; tasca. Etimologia (origem da palavra taverna). Do latim tabernam; pelo francês taverne.

[7] Quando Fausto vai fazer a magia em busca de Helena, a pedido do Imperador, desce ao Reino das Mães com a chave dada por Mefistófeles, que é seu próprio falo. Fausto ali tem o sentimento megalomaníaco de querer possuir todas as mulheres em idade fértil, pois vê nelas a projeção de Helena.

A chave lhe cresce às mãos e o ato masturbatório é descrito sem restrição. A lanterna mágica da qual as figuras fantasmagóricas de Páris e Helena emergem nada mais é do que a genitália feminina. À visão de Helena (=o feminino em geral e a beleza por antonomásia) Fausto tenta raptá-la e a cena se conclui com seu desmaio.

Em sono surge então a figura de seu antigo fâmulo (discípulo) que é a expressão de sua Sombra. Esse fâmulo é que vai produzir, como que de partenogênese, a figura do Homúculo (ser sem peso e hermafrodita), nascido com intelecto adulto e com corpo em miniatura. O fâmulo, agora bacharel, é ele mesmo todo arrogância de quem supõe tudo saber:

[8] A caracterização de Goethe por Franz Rosenzweig lança luz sobre o personagem de Fausto.

[9] Fausto vai à cozinha da bruxa, onde toma o elixir da juventude. Este elixir tem o poder de lhe dar um apetite sexual descomunal, uma espécie de super Viagra avant la lettre. Fausto envelhece no romance, portanto pode-se concluir que por juventude do elixir devemos entender apenas a virilidade descomunal. Na cozinha da bruxa Fausto se apaixona pela imagem do espelho, obviamente ele mesmo, que se enxerga como Helena de Tróia. Mefistófeles declara então que, desde aquele momento, ele verá Helena em qualquer mulher. Estamos aqui diante da Anima, o conceito psicológico desenvolvido posteriormente por Jung. Uma das conseqüências do elixir da juventude é o ímpeto onanista incontrolável desenvolvido por Fausto, narrado em diversos momentos, indicando que ele estava apaixonado por si mesmo. Amor sui, como diria Santo Agostinho.

[10] o filho da filosofia (ou da alquimia), o Homúnculo; e o filho de Fausto com Helena, o Eufórion